Manarairema – Itapebi – Ditaduras e literaturas

18 de Dezembro de 2014 21h12

Passando pelo Itapebiacontece li a matéria sobre o que ocorreu com a Rádio Nova Cidade FM. Não sei se fiquei impressionada com a estupidez humana ou se fiquei triste ao constatar que cidades e pessoas involuem com o passar do tempo, o que deveria ser o co

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Não posso deixar de falar sobre um livro que li há muitos anos e que recentemente doei, entre outros, para a Biblioteca Municipal de Itapebi : A Hora dos Ruminantes (José J. Veiga, Ed. Difel, 1996). Nesse livro o premiado escritor do realismo fantástico conta sobre uma fictícia cidade - Manarairema – que, repentinamente, é invadida por animais. Primeiro os cães que impressionam os habitantes do pacato lugar não pela conhecida fidelidade canina aos humanos, mas pela praga que se tornaram ao mostrarem seus dentes raivosos. No livro José J. Veiga diz: (...) O palco estava armado para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.

Antes a cidade havia sido invadida por milhares de bois que deixava montes de suas necessidades fisiológicas dentro das casas das pessoas, expulsando-as e retirando-lhes a dignidade. Outros animais também invadiram tudo e tomaram assento no lugar. Vale dizer que esses eram comandados por homens (pelos homens da tapera – como diz no livro se referindo aos estrangeiros) despreocupados de dizerem à população as suas reais intenções. Eles, os homens da tapera, armaram o acampamento e fincaram sua bandeira, marcando, dessa forma, a tomada de posse do lugar.

A bosta dos bois, em princípio, incomodou. No entanto o povo da antiga e pacata cidade se acostumou com aquele absurdo, como se acostuma naturalmente com a violência, a doença, a carestia, etc. É provável que se as escolas cumprissem seu papel de desenvolver a consciência (também política) dos jovens, quando estes ficassem adultos certamente usariam a necessária “rebeldia”, para não aceitarem o que lhes desconfortam ou que o que não conseguem entender. Mas parece que no nosso país ensinar a pensar para mudar talvez seja um valor desnecessário.

Assim como a bosta dos bois de Manarairema já não incomodavam mais, também os absurdos que acontecem em Itapebi já não surpreendem a mais ninguém. Temos a mania de nos acostumarmos. E não levantamos a bandeira da indignação. Não usamos mais a nossa “rebeldia” para falar e dizer. Aí, peço emprestada a voz do poeta Eduardo Alves da Costa no seu poema No Caminho com Maiakóvskki
"[...]
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

[...]"

Então, deixo aqui a minha reflexão sobre o que está acontecendo à população de Itapebi. Será que está se comportando de forma condescendente e passiva, mesmo que aborrecida e triste e não vê outra saída senão obedecer a um regime que me lembra o período ditatorial? Veja a fala do personagem Geminiano Dias (A Hora dos Ruminantes p. 46-46), que no início discorda da prepotência dos “homens da tapera”, mas depois se conforma: (...) a cabeça baixa, num conformismo inconformado, parece que procurando no chão a justificativa para aquele trabalho absurdo, idiota. (...).

Parece que estamos vivendo um renascimento da Ditadura dentro da cidade de Itapebi (ou será algum experimento maligno?) onde as torturas morais e psicológicas viraram prática de intimidação, neutralizando o poder da vontade do cidadão. Querem calar a boca do povo assim como calaram a boca da rádio. Só conseguirão se arrancarem a voz da garganta do povo que pensa e sente. Os bichos não podem se apossar dos nossos quintais, pois que a literatura está aí posta para colher as noticias da vida e transformá-la em denúncia contra os abusos dos insensatos.


Por   Neuzamaria Kerner


NEUZAMARIA KERNER é 
Graduada em Letras, professora, membro da Academia de Letras de Ilhéus

PUBLICOU OS SEGUINTES LIVROS:
Fragmentos de Cristal
Eu Bebi a Luz
A Presença do mar na prosa Grapiúna
O livro-arbítrio das Evas – Dentro e fora do jardim





"Leio e escrevo para me somar e me dividir"

 
 

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