Os dias (antes e) depois do 13 de maio

13 de Maio de 2020 11h05

A ocorrência do 13 de maio em si significou muito pouco ou quase nada em termos de mudanças sociais para a negritude.

Twitter: @ItapebiAcontece

Foto: Reprodução do quadro de Jean-Baptiste Debret. 

 

No dia 13 de maio de 1888 a princesa Isabel assinou a Lei Áurea e todos os negros escravizados passaram a ser cidadãos brasileiros. Findava-se, assim, um período de limitações sociais para negritude, que deixa de ser semovente, cativa e submissa para adquirir capacidade civil, liberdade e emancipação. E essa é a história que nos contam sobre o dia da abolição da escravidão. E essa é a história que seria mais confortável para eu contar e de me debruçar; uma que me exigisse apenas dizer que os negros e negras que passaram a ser livres também foram protagonistas do processo de abolição. Me seria muito mais tranquilo tecer essas linhas apenas para contar as histórias de heróis e heroínas que por tanto tempo foram invisibilizados e silenciados.

Esse artigo, porém, me exige muito mais do que citar heróis da abolição, muito mais do que dizer que a princesa é Dandara e não Isabel, exige mais do que frases de efeito sobre empoderamento e representatividade. Os dias depois do 13 de maio exigem uma reflexão sobre cidadania, conformação dos ideais republicanos, exige-me uma séria crítica à branquitude brasileira.

A ocorrência do 13 de maio em si significou muito pouco ou quase nada em termos de mudanças sociais para a negritude. Os institutos da escravidão foram abolidos na forma da lei, mas de fato permaneceram mesmo após a formulação da primeira Constituição Republicana e, quando muito, foram atualizados com novos nomes. Porém as funções cumpridas por eles seguiram obedecendo as mesmas lógicas segregacionistas baseadas em critérios raciais, que foram mobilizados biologicamente para que se perpetuasse uma mão de obra disponível, barata e precarizada. 

A abolição da escravatura no Brasil mais tem a ver com a vontade das elites brasileiras de estreitar relações com a Inglaterra, que condenava o trabalho escravo porque almejava a consolidação e desenvolvimento do capitalismo internacional, do que com a benevolência da branquitude abolicionista. A anterior proibição do tráfico de negros e negras nas colônias inglesas, que era utilizada como exemplo positivo em documentos legislativos que exigiam o fim da escravidão no Brasil, baseou-se na necessidade de avanço da industrialização e não na ojeriza em manter seres humanos tratados como coisas, objetos, passíveis de apropriação e uso.

O curioso é que a romantização da figura da Princesa Isabel, santificada e beatificada inclusive no campo religioso afro-brasileiro[1], atua como uma redenção da branquitude. A responsabilização por toda a violência, mortes, torturas e desumanização exercida pelo poder branco se esvai no exato momento em que a imagem de candura e mansidão de Isabel é elevada ao status de redentora dos mesmíssimos negros que outrora oprimiu. Logo, permanece a desumanização de quem nunca foi humanizado, e se humaniza aqueles que durante toda a história desempenharam papéis de perversão e brutalidade.

Os dias depois do 13 de maio são marcados pela inscrição dos corpos negros em estereótipos de preguiça, malandragem, ameaça, sexualização e bestialidade. Aqueles que vendiam os seus iguais. Os brancos, por outro lado, passam para a história como salvadores dos negros que não tinham nem ao menos a capacidade de se mobilizar pelos seus próprios direitos.

E aí reside outra falácia muito bem articulada pela branquitude através dos tempos, a ideia de que os negros e negras escravizados não eram capazes de mobilização e agência. Essa imagem é incutida no imaginário social brasileiro desde a infância, na escolarização. Quantas vezes não ouvimos durante a fase escolar que a escravização dos negros se dava porque os indígenas não se permitiam capturar, enquanto os negros não se organizam e, portanto, eram alvos mais fáceis? Essa narrativa, capciosa, esquece-se propositadamente de todos os modos associativos dos povos negros escravizados, que perpassam desde as congregações religiosas até a resistência quilombola. Organizações como as irmandades religiosas, que são o embrião dos movimentos negros brasileiros que já no período colonial mobilizavam-se pela garantia do mínimo de cidadania, que era o batismo e o enterro em condições adequadas. É importante destacar que nesse período o batismo representava a inscrição nos registros públicos da nação, que ficavam a cargo da igreja católica.

A historiadora Fernanda Oliveira, doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em sua dissertação de mestrado percorreu o histórico do associativismo negro na cidade de Pelotas-RS, parte de suas investigações descrevem os processos de resistência da população negra desde o período escravocrata. A pesquisadora atenta para a constituição de espaços onde os negros e negras não só tinham possibilidade organizativa mas obtinham algum tipo de autonomia. Trabalhos como o da doutoranda Fernanda são fundamentais para uma nova historiografia da escravidão, que chegue as salas de aula e que rompa com esse mito sociológico de anomia da população negra.

A própria formação do mercado de trabalho no território brasileiro, que antecede o marco legal da abolição da escravatura, se dá a partir de uma lógica eminentemente anti-negritude. Um exemplo disso é a Lei de Terras, de 1850, que instituía que a aquisição de propriedade agrária se daria exclusivamente mediante compra. Observando esse dispositivo legal logo percebemos que não se tratava apenas de uma regulação sobre direito agrário, mas de uma política pública de incentivo a imigração e a ocupação do território brasileiro por estrangeiros europeus, que inclusive isentava os mesmos do serviço militar. Benefícios concedidos com o intuito do almejado branqueamento da nação. 

É importante destacar aqui que a Lei de Terras foi promulgada duas semanas após a edição da Lei Eusébio de Queiroz, que instituiu o fim do tráfico internacional de escravos. E as memórias do meu ensino em período escolar mais uma vez se fazem presentes, porque durante todo o curso do meu aprendizado em nenhum momento esses acontecimentos históricos me foram repassados de forma conexa. O fim do tráfico negreiro me foi ensinado juntamente com um bojo de legislações que eram tidas como anti-escravagistas, aquele quadro esquemático de leis que antecederam a abolição, todas apresentadas como momentos preparatórios da emancipação efetiva dos negros e negras, a qual, hoje sabemos, não ocorreu. Hoje, já universitária e crítica, me parece muito mais lógico que as conexões legislativas são outras, operacionalizadas para o desenvolvimento do capitalismo e não para a libertação dos negros e negras escravizados.

A lógica do trabalho precarizado para a negritude, tanto no contexto urbano quanto no contexto rural, também é uma consequência do período escravocrata. A naturalização da população negra em espaços de trabalho insalubres, não renumerados ou sub-renumerados se estabelece já em meados do século XIX. Os negros escravizados ocupavam “a base da atividade econômica, produzindo bens e serviços, trabalhando na limpeza e conservação das vias públicas, no transporte, entre outros” (THEODORO, 2008) , quase 130 anos depois da abolição, vemos que a mobilidade social da população negra alterou-se muito pouco. E essa pouca mobilidade diz muito a respeito da aquisição de uma cidadania plena.

Se esse extrato da população brasileira continua massivamente desempenhando as mesmas funções laborais que eram desempenhadas no período anterior a abolição, me parece evidente que as promessas de emancipação e cidadania não se efetivaram. E não se efetivaram porque as destinações de políticas públicas efetivas para a integração sócio-econômica dos negros e negras pouco ocorreram no período pós abolição ou não se aplicaram de forma plena.

O foco do movimento social negro, desde a sua origem, e nesse sentido podemos dizer que essa é uma característica global desse movimento social, sempre esteve relacionado com o tratamento jurídico isonômico. Se no período escravista a população negra não tinha direitos porque era escravizada, no período pós-abolição as mobilizações da negritude se dão no sentido de serem tratados conforme o cômputo da população é. Se a educação é um direito de todos, fundamental para o exercício da cidadania, as associações e congregações negras do início do século XX irão se mobilizar para exigir do Estado brasileiro o direito de frequentar escolas. Se é livre o direito ao culto, as comunidades de terreiro irão fazer todos os esforços possíveis para que tenham suas expressões religiosas respeitadas, se é pressuposto fundamental desse país o direito a saúde e habitação, exigir-se-á saúde integral e moradia digna para a população negra.

Se esta é uma democracia de fato e de direito, que seja possibilitada a emancipação plena da população negra, que não sejam tão abissalmente distantes os índices de desenvolvimento humano da comunidade negra e dos não-negros. É evidente que a falácia da abolição e da liberdade não serve mais a sociedade brasileira. Que tipo de emancipação é esta em que vidas são ceifadas, a todo momento, em função de sua cor? Que tipo de cidadania é essa em que a segregação sócio racial é tão aprofundada que chacinas ocorrem sempre nos mesmos bairros em que a acachapante maioria dos moradores é preta? Que tipo de Estado Democrático de Direito é este em que os sistemas jurídicos são utilizados e gerenciados de modo que o acesso da população negra seja limitado ou inexistente?

O desemprego, o genocídio, a baixa alfabetização, a habitação precária, a objetificação de corpos. Traços da escravidão. Traços da abolição de Isabel. Dos dias depois do 13 de maio. Da liberdade sem asas, da fome sem pão

 

Por: Winnie de Campos Bueno

(Winnie de Campos Bueno é Iyaloríxa do Ile Aiye Orisha Yemanja (Pelotas/RS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas.)

 

 


 

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