Entrevista a Revista E - Renato Janine Ribeiro

13 de Outubro de 2014 20h10

O professor de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro, fala da postura do brasileiro diante da ética e também do perigoso preconceito que existe em relação à política no país

Twitter: @ItapebiAcontece





Certo e errado. Conceitos antagônicos que se colocam como dois pontos ligados por uma reta: o homem. Em entrevista exclusiva à Revista E, o professor da USP, fala, que participou do Seminário Internacional Ética e Cultura, realizado em outubro no Sesc Vila Mariana, analisa que, sobretudo no mundo de hoje, essas noções não devem iludir como se fossem coisas claras. Há muitos outros pontos ao longo dessa reta.

 

Há uma interpretação errada da obra de Maquiavel? Qual o conceito de ética presente nos textos do florentino?

Durante muito tempo, Maquiavel foi considerado um autor maldito. O século 20 conheceu uma recuperação da sua obra por alguns motivos. Um deles é o recrudescimento do nosso interesse pela política. A leitura dos textos de Maquiavel nos leva a perceber que ele não defendia a tese de que os fins justificam os meios e de que o mal deve ser praticado para conseguir um fim egoísta. Ele se mostra preocupado com o fato de que na política não existem regras fixas; governar, isto é, tomar a iniciativa política, é um trabalho extremamente criativo e, por isso mesmo, sem parâmetros anteriores. Assim, essa preocupação do filósofo, por curioso que pareça, torna-se um bom instrumento para repensar a ética. Para falar de ética, também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das duas éticas. Weber, depois da Primeira Guerra Mundial, distingue a ética de princípios, em que se aplicam valores já estabelecidos, da ética da responsabilidade, que é a ética do estadista. Esta modalidade aponta para a necessidade de pensar nos resultados possíveis de uma determinada ação. De modo geral, a ética da responsabilidade é uma retomada de Maquiavel; ela representa a interferência da po-lítica na ética. Agora, o fato interessante é que nós, quando agimos, lançamos mão de um misto das duas éticas. De alguma forma, há alguns valores e princípios dos quais não abrimos mão. Por outro lado, ninguém deixa de levar em conta as conseqüências de seus atos. Isso nada mais é do que a aplicação da ética da responsabilidade. Então, o ponto interessante de Maquiavel e da questão ética está na maneira como nós a enxergamos sob a luz da política. E hoje, com o fim das garantias tradicionais para a ação do indivíduo privado, estamos todos mais ou menos na posição do príncipe de Maquiavel - isto é, num mundo de incertezas, dentro do qual temos de inventar a melhor posição.

 

O que devemos entender por ética?

A ética diz respeito à conduta humana dividida entre o Bem e o Mal. Mas é muito complicado aplicar esse discurso em uma época em que os valores não são mais absolutos. Não posso dizer que o homossexualismo é errado. Não posso nem dizer que, em princípio, o adultério é errado. Todas essas condutas foram relativizadas. É por isso que se torna essencial mostrar às pessoas como é importante que elas enunciem seus próprios valores, e não apenas sigam valores impostos por outrem. É preciso que as pessoas descubram seus próprios valores e sejam coerentes com eles. Elas devem pensar, também, quais seriam os resultados, para elas e para a sociedade, de uma escolha. O meu problema tem sido contestar uma ética do certo ou do errado. Uma ética assim acaba isentando a pessoa da dor e da dificuldade de escolher. Isso é muito comum. De modo geral, grande parte das pessoas que discutem ética no Brasil exalta a reclamação, a indignação, a crítica, mas não no sentido de definir uma alternativa viável por meio de um pacto da sociedade e da política. Temos que ir além dessa indignação fácil. É preciso estabelecer quais são os valores éticos que as pessoas estão prontas a assumir. O que não podemos fazer em termos éticos é dispensar as pessoas de suas próprias escolhas.

 

Como a referência à ética de princípio e à ética de responsabilidade se aplica ao Brasil?

No Brasil, há uma tendência muito forte de pensar que o político não é um indivíduo ético. Isso significa dizer que ele é alguém que até pode seguir alguns preceitos morais, mas que quando precisa escolher entre esses valores e o bolso, entre esses valores e o poder, geralmente opta pelo próprio interesse. O que quero dizer é que o preconceito contra a política que vigora no Brasil é extremamente danoso, porque construímos uma imagem de nós que ao mesmo tempo em que se mostra muito moralizada, encontra muita dificuldade de lidar com a vida real; construímos uma espécie de esquizofrenia do brasileiro. De um lado, o discurso que proferimos se apresenta como um discurso altamente ético e moralizante, mas, de outro lado, a prática - de todos nós, não só dos políticos - é um Deus nos acuda. Esse quadro é particularmente agudo na política. Achamos que a política deveria ser pautada pela ética, por isso insistimos em nos atermos a grandes princípios, mas no momento de executá-los, falhamos.

 

O que significa, então, agir politicamente?

Significa você ser responsável pelas suas decisões. Antes de entregar um pacote pronto, definindo o que é certo e o que é errado, seria necessário perguntar qual é a maneira correta de agir. Um Código de Ética é uma expressão contraditória, pois ética e lei são coisas diferentes, e até mesmo opostas. Se existe um código com regras de conduta pré-definidas, segui-lo ou não independe da pessoa aceitá-lo como certo e justo. O que importa para a sociedade é que ela cumpra a lei, não as razões que a levam a isso. Esse é o caso do trânsito: serei ético se parar no vermelho e se ceder a vez por convicção, e não por medo da lei. Mas, para as demais pessoas, não é importante se faço isso por razões éticas ou por medo da multa. Assim, se temos um pacote pronto (um Código de Ética), as pessoas tendem a não refletir sobre as suas próprias ações. Quem pode ser ético é o sujeito que pratica o ato, e não o ato em si.

 

Se o governante se pauta pelos resultados e escolhe sozinho os caminhos a serem seguidos, quais são os parâmetros que limitam sua ação?

O governante tem mais responsabilidade pelos resultados dos seus atos do que os outros cidadãos. Quando queremos condenar um político, cominamos sua culpa não pelos eventuais fracassos das suas escolhas políticas, mas pela sua corrupção. Esse julgamento é equivocado. O governante, de qualquer forma, será julgado pelos resultados dos seus atos. Se o presidente da República melhorar o nível de vida dos brasileiros e reduzir a diferença social, terá cumprido sua missão com sucesso. Agora, sobre a maneira como ele atingirá esse objetivo, paira uma fronteira nebulosa. É difícil dizer que a ação política deve seguir os Dez Mandamentos. Claro, é desejável que siga. Mas não é uma atitude que deve ser perseguida a todo o custo. Há tratados e regras eventualmente desobedecidos porque o governante lida com situações sem ter qualquer proteção. Eu, como cidadão, quando tomo decisões, posso ter uma proteção. Em uma sociedade organizada (que não é o caso do Brasil), sei que se eu trabalhar, for honesto e respeitar as leis, terei segurança, saúde, respeito e educação. E sei também que se não seguir esses princípios não alcançarei essas benesses. No entanto, essa é uma condição para os cidadãos e não para o governante. O governante vive uma situação de risco, de alto risco. A imposição da ética privada ao governante é complicada. Mas essa é a teoria, digamos, clássica, a leitura convencional de Maquiavel. Eu vou além e acredito que essa ética aplicada ao governante, ou seja, que implica riscos, também vale para nós, cidadãos comuns. Ainda mais em um país como o Brasil, onde mesmo que eu siga a ética dos Dez Mandamentos, não terei a certeza de que tudo correrá bem. É nesse sentido que a ética de responsabilidade, que a princípio seria prerrogativa do estadista, transfere-se para os cidadãos. Essa é uma das grandes mudanças do final do século 20. No fim das contas, reduz-se a distinção entre as duas éticas - pública e privada.

 

Seria necessário, então, construir um novo arcabouço de valores e princípios?

A principal referência é a responsabilização das pessoas, cuja base prescritiva tem de ser assumida pela própria pessoa. Tudo isso passa por um processo educativo. É claro que deve ser ensinado para as crianças que elas não podem fazer determinadas coisas. Tal ação tem de vir escudada no princípio da reciprocidade, que diz que eu não posso fazer algo a outras pessoas que não quero que façam comigo. Não defendo a total ausência de normas. Mas há uma dose enorme de prescrições inúteis. Vivemos num sistema pendular, entre o excesso de proibições e o excesso de permissividade, que é justamente fruto da nossa dificuldade de perceber que a ética, em última análise, significa responsabilidade pessoal. Como nós não assumimos isso e nos pautamos em regras prontas, não conseguimos entender que, mesmo que eu apreenda uma regra que venha de fora, ela só terá validade quando eu assumir sua autoria, por meio de um processo de questionamento. Em contato com uma prescrição emprestada, a primeira coisa que devo fazer é perguntar por que apreendê-la. Muito da moral sexual tem a ver com isso. Existe um mal-estar em relação ao sexo ainda muito presente na sociedade brasileira. Esse estado é proveniente desse grande sentimento de culpa. Eu pergunto: que mal faz para a sociedade uma conduta sexual considerada pouco ortodoxa? Qual o problema? O outro lado da mesma moeda é que acabamos sendo muito complacentes com deslizes morais de outra natureza, como a corrupção e a infração à lei.

 

Qual é o limite da ética do governante?

A ética do governante é, hoje, a ética de quase todos nós. A situação em que se encontra o governante, uma situação que não lhe garante o resultado das ações, é a situação de todos nós. Como não há mais garantias sobre o resultado, devemos escolher os governantes considerando os resultados, mais do que considerávamos no passado. A intenção não é uma garantia do caráter ético de uma ação. Até porque, desde as teorias de Freud, sabemos que a intenção consciente significa uma coisa, enquanto o desejo inconsciente significa outra bem diferente. Muitas vezes, o discurso mais moralista esconde uma agressividade extraordinária. Assim, devemos pensar numa ética em que a questão da intenção perca a importância. Mas há outro ponto: a exigência ética sobre o governante, ao contrário do que se imagina, não é pequena. O governante pode agir corretamente e ser condenado se ele não atingir resultados convincentes e se não cuidar da sua imagem. O governante tem prescrições a seguir. O problema é que temos uma imagem falsa disso. Uma imagem que resulta do tempo em que se censurava a imprensa, em que o governante não prestava contas para a sociedade. Hoje, existe uma série de preceitos que ele deve obedecer.

 

Tendo em vista o princípio da responsabilidade, quais são as diferenças entre a ética desenvolvida no período da ditadura e a de hoje, quando vivemos, em tese, a democracia?

Durante a ditadura não havia reciprocidade: havia o lado que podia tudo e o lado que não podia nada. Havia, em suma, uma desigualdade brutal. Não havia transparência: as questões eram decididas sem que a opinião pública soubesse o que se passava. Em um regime democrático, mesmo com todas as limitações que o nosso apresenta, existe a responsabilidade do mandatário que passa pela transparência, pelo crivo da opinião pública, pela prestação de contas e pela reciprocidade.

 

Como o senhor define política e quais seriam os instrumentos de crítica a um governante?

Política, para mim, não está ligada à polis, à cidade, à organização das instituições, como estava na tradição da teoria política, mas está ligada ao poder, no sentido de ser a maneira como cada um de nós pega os fios descosturados da sua vida e tenta ser senhor deles. Então, na hora em que eu me torno adulto, isto é, no momento em que decido ser senhor do meu destino, enfrentando todas as adversidades, é que eu faço política. Por isso eu digo: política é poder. Política é deixar de ser um joguete passivo daquilo que me formou e me tornar mais ou menos um cidadão ativo da minha vida, um condottiere do meu destino. Serei o estadista do meu futuro. Dessa forma, todos nós fazemos política, mas isso é uma coisa difícil de ser feita, e grande parte das pessoas mostra-se incapaz de conduzir. Para me tornar senhor desses fios - para tornar os meus valores coerentes - preciso, porém, abrir mão de muitas coisas. A crítica à ação política tem a ver com a definição do futuro. É preciso analisar qual futuro o governante está urdindo para a sociedade. Qual é o seu projeto? Há êxito? E depois, como se confrontam esse projeto e o meu projeto pessoal. Mas é claro que se deve partir do pressuposto de que tais projetos sejam claros e legítimos, o que não ocorre no Brasil. Aqui, muitas vezes, esses projetos, sobretudo os da direita, são desonestos. Além do mais, faz muito mal à política brasileira que durante a campanha eleitoral nós nos deparemos com atitudes maniqueístas: ora a direita representa o mal e eu voto na esquerda, ora acontece o contrário.

 

Como o senhor analisa a postura de nossos governantes diante da ética da responsabilidade?

FHC alude à ética weberiana do estadista, ou seja, a essas duas éticas às quais me referi. No entanto, acredito que a ética aplicada pelo governo tucano é a ética da irresponsabilidade, e não a da responsabilidade. Uma ética na qual, quando existem múltiplas escolhas a serem feitas, o governo releva as conseqüências e o resultado. Mas quando o resultado fracassa, ele não assume a responsabilidade. Diante do malogro do projeto do governo atual, principalmente no campo social e da energia, não se assumiu a responsabilidade política. Em princípio, o projeto do governo previa desenvolvimento econômico para impulsionar o desenvolvimento social. O problema é que o desenvolvimento social não ocorreu e as bases econômicas falharam no tocante à energia. Se o grande problema do país é a injustiça social, e o governo atual não conseguiu reduzir esse problema, então o fracasso é grande.

Compartilhe por:

01 de Setembro de 2018 11h09

Utopia não existe, mas continuo acreditando

Entrevista....Ele tem embalado sucessivas gerações desde os anos 1960 — seja em parceria com Roberto Carlos, seja nas músicas que gravou sozinho ou naquelas ao lado de grandes estrelas da música brasileira. Aos 77 anos, Erasmo Carlos acaba de lançar seu

30 de Abril de 2015 20h04

Pequena Sabatina ao Artista

Não há receita para apreender as epifanias de um criador. Postulados, cânones, referências, todos eles nos falam de um pensamento analítico. No entanto, vivenciar a leitura e dela retirar algo é experiência movida fortemente pelos subterrâneos de nossa co

13 de Outubro de 2014 21h10

Leonidas Donskis - Entrevista a Isto é

Membro do Parlamento Europeu desde 2009, o filósofo, teórico político e analista social lituano Leonidas Donskis, 52 anos, é famoso pela veemência na defesa dos direitos humanos e da liberdade civil mundo afora. Em entrevista à ISTOÉ, concedida de Kaunas,