Lavagem do Bonfim renova esperanças de convívio pacífico entre religiões
Milhares de pessoas, de diferentes raças, classes e credos, foram às ruas da Cidade Baixa, ontem, em mais uma demonstração de respeito às diferenças e manifestação de fé por Jesus ou Oxalá
Twitter: @ItapebiAcontece“Je suis Charlie” (Eu sou Charlie), brincou um transeunte ao ver Bira do Jegue passar - sem o jegue - ontem, durante a cerimônia religiosa que antecedeu o cortejo da Lavagem do Bonfim, a partir do Comércio. Às 8h40, apesar do ligeiro atraso na programação, a maquiagem branca e preta do nosso Charlie Chaplin não destoou do cenário, tantas vezes fotografado pelo francês Pierre Verger.
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Representante do candomblé, baiana é ‘emoldurada’ pela imagem do Senhor. Sincretismo e paz no Bonfim |
Mas, ainda diante do claro enigma no céu, que não entregava se vinha sol ou chuva, o trecho de oito quilômetros foi ocupado pela multidão de branco que partiu, firme e forte, na paleta, da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a Basílica do Bonfim, com o objetivo de fazer valer um ditado quase clichê: “Quem tem fé vai a pé”.
Mas entre um milhão de cabeças e mundos, houve quem subvertesse e até reinventasse uma tradição alternativa à ordem estabelecida. “Quem tem fé vai rodando”, brincou o aposentado Luis Antonio Cruz, 50 anos, conhecido como Cabral, que descobriu que chegar e sair de cadeira de rodas era possível.
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Mar branco sobe a colina depois de 8 quilômetros de trajeto desde a Conceição da Praia |
Acompanhado da mulher, Anete, e do filho, Antonio Luis, de apenas 1 ano, o veterano — já são 32 anos de cortejo, dez deles como cadeirante — se tornou, além de um exemplo de superação, a personificação da relação harmoniosa entre crenças, que é a alma da Lavagem.
“Sou católico, espírita e também sigo a umbanda. Tiro o melhor de cada uma e agrego”, explica Luis, que estreitou suas relações com o divino após um acidente automobilístico que lhe tirou os movimentos da cintura para baixo.
Harmonia
Colina abaixo ou acima, os personagens sagrados de Verger, o fotógrafo francês que retratou a Bahia (e o Bonfim) como poucos, estavam todos lá, sem apelar para charges ou caricaturas. Crianças, comerciantes, mães e pais de santo e o macho adulto negro no comando - se não considerarmos as baianas, de acarajé ou receptivo.
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Irmã Ivanilda abraça baiana na Colina Sagrada. Mais que tolerância, Bonfim é alegria |
Com Oxum como guia, e colares e contas que homenageavam Exu, Ogum e Yemanjá, Maria Cristina Costa, 56 anos, moradora de Sussuarana, comemorava sua 20ª aparição na Lavagem, além da presença de outras pessoas que creem no sagrado. “Até os evangélicos estão aqui. O importante é receber bem e em paz”, disse.
Sou um pouco católico, um pouco espírita e também sigo a umbanda. Tiro o melhor de cada uma e agrego
Luis Antônio Cruz, aposentado, faz os 8 km de cadeira de rodas
Durante a celebração interreligiosa promovida no adro da Igreja da Conceição, a coordenadora regional da Brahma Kumaris (de orientação budista), Ida Meirelles, afirmou que a Bahia tem tudo para ensinar “como reverter a ordem de intolerância e criar uma ordem nova” no mundo.
“Temos um memorial, que é a Baía de Todos os Santos, e somos um povo mais aberto, que pode ensinar a todos a voltar a viver em harmonia”, afirmou.
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Sol forte não desanimou as índias do cocar branco |
O presidente da Federação Espírita, Marcelo Cadidé, também apontou a Bahia como um exemplo ao resto do mundo, e fez referências aos atos terroristas promovidos por fundamentalistas islâmicos que deixaram um rastro de mortes na França, nas últimas semanas.
“Estamos aqui, reunidos, dialogando, fazendo valer a função da religião, que é tornar o adepto melhor”, declarou, antes de exaltar o islamismo como uma religião nobre e digna.
Aquele abraço
Digno de registro, o abraço entre a irmã Ivanilda, freira da Congregação Franciscana Hospitaleira, e a baiana Altamira Teodora, foi um exemplo de que é possível haver não só respeito entre pessoas de diferentes credos, mas também carinho e amor.
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Irreverência e bom humor estão todo ano no Bonfim |
Apesar de não se conhecerem, elas compartilharam um caloroso abraço, mostrando o espírito de igualdade e adoração do Bonfim. “Eu acho que o sincretismo é algo muito importante. Nós veneramos o Senhor do Bonfim e estamos aqui por ele. É um dia de agradecimento e louvor. Não há diferença de crença, nem religião. Aqui somos iguais”, considerou irmã Ivanilda.
“Todos nós aqui somos amigos e irmãos. O que buscamos hoje é paz, saúde e muita felicidade para todos, por isso não existe razão para criar barreiras nem diferenças”, completou a baiana Mira.
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Filhos de Gandhy levam afoxé do Comércio à Colina |
Na mira da Polícia Militar, pouco ou nada tinha a ver com intolerância. “Não registramos nenhum caso de racismo ou de intolerância religiosa, mas, se houvesse, o procedimento seria encaminhar o indivíduo à delegacia”, comentou o soldado Sidnei Anunciação, do Batalhão de Eventos.
Não há diferença de crença, nem religião. Aqui somos iguais
Irmã Ivanilda, após longo abraço com baiana
Sargento, o deputado Pastor Isidório mostrou que estava tudo junto e misturado ao bater tambor aos pés da Colina Sagrada. E Luis Antonio, que voltou à Conceição na sua cadeira de rodas, viu que, diante de tanta liberdade, igualdade e fraternidade, tudo só podia terminar em dança no Terminal da França.
Por João Gabriel Galdea | Colaborou Victor Lahiri / Correio 24 horas